terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Monica Vitti. A beleza que Antonioni tornou eterna






















Michelangelo Antonioni

Michelangelo Antonioni

No início dos anos 60 surgem quatro dos melhores filmes de M. Antonioni A Aventura (1960), A Noite (1961), O Eclipse (1962) e O Deserto Vermelho (1964). A Aventura entrou no mundo do cinema como um furacão. Depois de diversas dificuldades financeiras e falta de meios técnicos, o filme estreia em Milão (já depois de ter sido banido e acusado de «pornográfico»).
Antonioni procurava uma maior simplicidade. Não desconhecia os seus pequenos erros técnicos, fazia-os de propósito. Entre eles o uso de “campo” e “contra-campo” e certos erros de posicionamento ou movimento. Dirigia os actores para além da chamada linha de 180 graus, desorientando com isso o espectador. O actor é apresentado à direita, mas após um corte surge à esquerda sem nenhuma explicação de como foi lá parar, a dificuldade de percepção de mudança de planos dá-se devido aos planos fechados. O actor apresenta-se quase como espaço em movimento, Antonioni filmou-os como jamais foi feito na história do cinema.
A outra grande inovação foi o repetido uso dos temps mort (tempos mortos), onde a câmara corre para além do momento quando qualquer outro realizador teria cortado. Barthes defendia que este traço exclusivamente antonioniano era simplesmente uma extensão de cada insistência visual do artista sobre o poder do olhar. O realizador «olha (va) para as coisas de forma radical, até ao ponto da sua exaustão» contra toda a (convenção narrativa), estendendo os momentos (inexpressivos) de um episódio. O exemplo supremo é a sequência final de O Eclipse. Um momento inexpressivo que descreve na forma mais bela a relação humana, entre as personagens representadas por Mónica Vitti e Alain Delon, uma relação de puro desinteresse e incomunicabilidade, de que tantas vezes Antonioni é acusado. O título de O Eclipse assume uma qualidade simbólica. Transmite o sentido de como a vida emocional normal é perturbada, como param os sentimentos (da mesma forma como acontece um eclipse). O filme termina com um grande plano de luz, de cima. Antonioni perde o rasto das personagens, no final nenhuma comparece ao encontro combinado. Vemos imagens mundanas e vagamente sinistras, rastos de vapor no céu observados por dois homens num telhado, a cara perturbada de uma mulher por trás de uma vedação, um edifício inacabado interditado e, evidentemente, a esquina sem ninguém.
A sequencia final é tipo documentário como se as vistas e sons do vulgar mundo da não ficção fossem os mais agourentos. Não só ambos os protagonistas desaparecem, como também os confortos da história de ficção que os contêm. A arte de Antonioni é como o entrelaçado de consequências, de sequências e de efeitos temporais que decorrem de acontecimentos fora de campo.

«Quando a cena principal acaba, há momentos menos importantes; e para mim, parece valer a pena mostrar a personagem nestes momentos, de costas ou de frente, focando um gesto, uma atitude, porque serve para clarificar tudo o que aconteceu, assim como tudo o que é deixado dentro das personagens.» M.Antonioni

Colorista do cinema, Antonioni, serve-se de cores frias activas até ao máximo da plenitude ou da sua intensificação para ultrapassar a função absorvente, que mantinha ainda personagens e situações transformadas no espaço do sonho ou de um pesadelo. Com Antonioni, a cor sustém o espaço até ao vazio, apaga o que absorveu. Bonitzer disse: «Desde L’Aventure, a grande preocupação de Antonioni, é o plano vazio, o plano desabitado. Como acontece no fim de “O Eclipse”onde todos os planos percorridos pelo casal são revistos e corrigidos pelo vazio. Antonioni procura o deserto: Deserto Rosso e Profissão: Repórter que termina com um travelling para a frente sobre o campo vazio, num entrelaçado de percursos insignificantes, no limite do não-figurativo, para uma aventura cujo termo é a eclipse do rosto, o apagamento das personagens. Em Antonioni, o rosto desaparece ao mesmo tempo que a personagem e a acção, onde a instância afectiva é a do espaço qualquer que Antonioni desenvolve por sua vez até ao vazio.

A primeira experiência de Antonioni com a cinematografia a cores foi com O Deserto Vermelho. As cores desempenham um papel muito significativo no filme, talvez devido à espera de Antonioni para filmar a cores. Antonioni falou do uso da cor para dar forma aos «estados de espírito» – não apenas aos estados de espírito das personagens ou situações de enredo, mas também aos do público. Aqui não há propriamente um deserto, deserto é talvez uma metáfora para a aridez da vida emocional, e vermelho talvez para o impulso erótico demasiado agitado que serve como substituto para uma vida mais equilibrada. Em todos os seus filmes defendeu o valor, força e subjectividade visual sem ter a imagem que depender de uma banda sonora.
Neste filme o efeito técnico do uso de lentes de telefotografia e zoom foi inovador. Esta tende a aplanar as distâncias entre os planos que se encontram à sua frente, reduzindo a profundidade de campo.
Antonioni escreveu: «Eu trabalhei muito em O Deserto vermelho com a lente zoom para tentar obter efeitos de duas dimensões, para diminuir as distâncias entre as pessoas e os objectos, fazer com que parecessem aplanados uns contra os outros.»
Este aplanar contribui para a sensação de opressão física, Giulliana parece pregada à parede, e as barras entre os casais parecem fazer parte dos seus corpos. O Deserto Vermelho, mais do que qualquer outro filme de Antonioni, estabeleceu um forte contraste entre os sentimentos das personagens e o mundo exterior, de uma forma bastante diferente da que acontece em O Eclipse. O estado da personagem Guilliana é visto nas imagens do filme, como um espelho. O próprio cenário, um complexo industrial, ilustra o estado desta personagem, onde é criada uma tensão psicológica que sufoca o próprio espectador. Em quase todas as cenas as cores são esmaecidas e discretas, mostrando um mundo descolorido como metáfora de um distanciamento com relação às coisas do mundo. Se a personagem é uma testemunha do ambiente, tem obviamente que ser apresentada como contemplativa, e isto exigia que nada mais fizesse do que olhar em seu redor, muitas vezes de costas para a câmara. Não há fusões nem fades, usados geralmente para expressar passagens e intervalos temporais. Existem somente cortes secos, realizados frequentemente de forma a dissimular os deslocamentos espaciais e intervalos temporais.
Os filmes de Antonioni sempre foram do presente, sempre falaram das coisas que ocorriam no mundo enquanto eram realizados e sempre traçaram uma cartografia das relações humanas naquele dado momento.
A fotografia de Carlo Di Palma e a interpretação de Monica Vitti como a insegura e desequilibrada Giuliana (que contrasta com uma certa frieza e automatismo das personagens em seu torno) são os pontos altos de uma viagem num labirinto de dúvidas e medos enclausurados numa prisão de máquinas e vazio. O terror do seu rosto aterroriza-nos e transmite-nos uma compaixão imensa pela forma como é mostrada a sua tremenda solidão. O tratamento pictórico do filme, tirando o máximo partido da composição e da cor, acentua a importância da paisagem como parte integrante da narrativa. As cores aqui são apagadas, envoltas por uma dominante cinzenta que unifica as várias tonalidades, privando-as das gradações mais vivas. Isto justifica-se porque, no filme, o mundo é visto pelos olhos de uma mulher que sofre de neurose e se sente separada da realidade. Neste caso a cor dá a ideia de como a personagem vê as coisas, muitas vezes sem a necessidade de recorrer ao diálogo.

Antonioni desenvolve os seus filmes em duas direcções: uma exploração dos tempos mortos da banalidade quotidiana, e a partir de O Eclipse, um tratamento de situações limite que as leva até às paisagens desumanizadas e espaços esvaziados que vão absorver as personagens e acções.

Mestre nas cenas finais, excede-se em Profissão: Repórter (1975), onde toda a cena (uma só cena) da morte do personagem decorre durante sete minutos. Locke, cansado da sua vida e identidade, tenta livrar-se delas adquirindo uma outra identidade e uma outra vida. Os acontecimentos ao longo do filme apontam para a necessidade de Locke em estar noutro lugar, noutra vida. Todo o filme se desenrola como uma passagem, indicando o final, ou seja, a morte. Embora a morte nos parece uma experiência violenta, no filme esta aparece-nos como uma experiência tranquila. As personagens aparecem ali sem qualquer referência ao seu passado, talvez porque cada vez mais as pessoas têm menos passado (do que no passado). Estas personagens não necessitam de transportar qualquer bagagem, quer moral ou psicológica. Em todos os seus filmes, em especial neste, deixa o silêncio ter o seu lugar, desprezando a necessidade de encher os espaços vazios com música comentativa.
O filme dá-nos informação sobre acontecimentos passados por fragmentos, como acontece em relação ao acidente sofrido por Guilliana em O Deserto Vermelho.

Nos três filmes, o silêncio assume o papel principal. Foi do silêncio que surgiu um dos aspectos mais estudados no vocabulário cinematográfico: os tempos mortos. Onde superficialmente não ocorre nenhuma acção, mas onde os seus personagens sem estarem em diálogo dão-nos as emoções dentro de ‘si’.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007




E deus agora cria as cidades: as flores do mal ou a flor má

Kevin Lynch escreveu um livro chamado a Imagem da Cidade. Não me lembro do que dizia, nunca dei nada por nenhum livro de teoria da arquitectura, mas lembro-me do título e lembro-me, hoje, que a cidade não tem imagem mas que as tuas imagens têm cidade.
Sabias que é deus ou Deus, sei lá, que agora cria as cidades? Dantes criava a selva. A floresta era dele (vou optar pela letra minúscula pois para mim igrejas são só arquitectura), dantes ele mandava na natureza, decidia onde é que nasciam as árvores, e as flores e os rios. Hoje já não. Hoje esse deus somos nós. Hoje somos nós que plantamos as árvores e decidimos se vamos ter um relvado verde com duas pedras. Hoje podemos escolher as flores mais bonitas para aquele espaço. Quando li o início e o fim da bíblia não era assim. Era ele que plantava e que dava forma e nome aos bichos. Hoje enjaulamo-los e pagamos para os ver limpinhos e de pelo macio. Tens ido ao jardim zoológico? Está cada vez mais urbanizado. Tens ido ao campo? Não? Pudera, os Portugueses só plantam eucalipto e esperam que aquilo dê boa madeira para a mesa onde amanha vamos tomar o nosso café bem no centro do Porto. No Rivoli ou no Lobbie? Já me estou a perder.
Era deus que tratava desses assuntos, da natureza, hoje somos nós! E as cidades? Adoro cidades, sabes? Estou a estudar arquitectura, é normal, mas gosto demasiado de cidades.
Hoje é deus que cria as cidades. Já não lhes conseguimos por as mãos. Crescem e crescem como querem. Hoje as cidades já não são para nós, sabias? Já não precisam de nós, são bichos ou plantas, os novos bichos e as novas plantas. Urbanizámos o território para nos servir, humanizámos os espaços ou o espaço. Criámo-las para as habitarmos, um organismo onde metíamos tudo o que precisávamos para viver. Mas elas crescem sem parar. Sabes o que me entristece? É que tenho umas cadeiras na faculdade que nos ensinam a planear cidades, a prever, a fazermos o papel de deus ao inventarmos para onde e como a cidade vai crescer. Mas…não sei, não dá para agarrar a cidade… Tudo o que fazemos é urbanizar ou reurbanizar parcelas de espaço, mais ou menos extensas que coordenam e qualificam, que querem agir em rede de complementaridade, mas…não a conseguimos agarrar. Parece um organismo vivo onde ninguém, nem o deus que parece que criou as flores, tem mão. Não dá para planear porque ela cresce sempre da maneira inversa. Por isso te falo em inversão de valores. Se me pedirem para planear o futuro natural do país eu consigo: acabo com os pinheiros e os eucaliptos e mudo a floresta nacional para melhor, mas se me pedem para planear a cidade tenho ideias incríveis, sei o que a cidade precisa para evoluir no bom caminho, mas não dá! É esforço perdido, ela vai sempre crescer na direcção que bem lhe apetecer.
Já vi as tuas fotos, são estranhas, sabes porquê? Andas por aí a fotografar a cidade sem pessoas, a horas mortas, vais para lá de manhã bem cedo ou ao domingo, mas não precisas. Filosoficamente falando, tenho andado a pensar nisto, a cidade já não tem dias e horas mortas porque não precisa de pessoas e cresce sem lhes perguntar se tem mesmo de crescer e se é essa a direcção.
Ando a ler as flores do mal, traduzidas, porque nunca me apeteceu aprender francês, e percebi que Baudelaire fala de uma vida da cidade que já não existe. Uma cidade de pessoas, feita por elas e para elas. Não sei se naquela altura o Homem ainda tinha mão na cidade, mas pelo menos a cidade precisava dele. Era uma grande flor que crescia ao ritmo da luz, mas que crescia também ao ritmo de uma vida urbana intensa. Hoje a cidade não precisa de nós! Eu ainda gosto das cidades e ainda as uso como o Baudelaire fazia, mas isto sou eu. A cidade está como nas tuas imagens, desprovida de gente. É uma soma de arquitecturas, ruas, vazios. As pessoas vivem dentro, no dentro e só usam o fora para ir para outro dentro mais ou menos interior. Gostei da escolha dos sítios (gosto desta palavra) que escolheste para fotografar, são paradigmas do que eu digo. São ruas de passagem entre dois dentros. As cidades deixaram de ter permanências e a questão da mobilidade está mais na ordem do dia do que a qualificação do espaço público, sítios da permanência por excelência. Fala-se muito em espaço público mas as praças são só lajes de granito, os cafés ás moscas e as lojas museus de peças que não auguram uso. As pessoas jantam sandes pelo caminho, fecham-se na internet e quando consomem tentam poupar tempo em cidades artificiais.
Não vejo o futuro das cidades com bons olhos, muito menos com muitos olhos de muita gente, gente que criou a cidade para ser servida e que hoje tem um papel de subserviência à cidade.
Já leste As Flores do Mal? Lê porque é um bom livro, e os bons livros lêm-se tão pouco, mas lê-o também para reflectires sobre a cidade de hoje, e se te interessar tanto como a mim, planeia o (ou um) crescimento da cidade, pensa em como deve ser a sua evolução, mas não cries falsas ilusões, porque já não consegues pôr mão nela.
Vemo-nos amanhã?, na cidade.

jose andre ramos, Porto,26.6.07